domingo, 15 de março de 2009

Algumas áreas problemáticas para a normalização linguística –
disparidades entre o uso e os instrumentos de normalização
Telmo Móia
Universidade de Lisboa
0. Introdução
Entre os critérios fundamentais para a definição da norma da variante padrão do
português europeu, é costume referir: (i) a comunidade de suporte, nomeadamente os
estratos mais escolarizados da população; (ii) o património escrito (onde se destacam os
textos literários e os textos oficiais); (iii) os instrumentos de normalização linguística,
particularmente gramáticas e dicionários, mas também instrumentos de divulgação
feitos a partir deles (prontuários, guias da língua, manuais de estilo, etc.); (iv)
considerações de carácter técnico sobre as estruturas linguísticas problemáticas.
Entretanto, quando se tenta definir a norma mediante aplicação simultânea dos critérios
referidos, surgem com frequência algumas dificuldades. Três situações – que explorarei
com algum pormenor – são especialmente relevantes: (i) contradição entre o uso mais
ou menos generalizado pela comunidade de suporte e as determinações das gramáticas e
dicionários (cf. desactualização dos instrumentos de normalização linguística e seus
efeitos nocivos, por exemplo, ao nível do ensino); (ii) contradição entre diferentes
gramáticas e/ou dicionários; (iii) conflito entre a norma imposta pelas gramáticas e a
regularidade do sistema gramatical, em produções de frequência muito baixa.
A análise de estruturas linguísticas que será feita neste texto concentra-se em
aspectos de natureza morfológica, lexical e semântica: questões de flexão em número,
na secção 1; o uso de particípios (ir)regulares, na secção 2; trocas entre parónimos ou
palavras homófonas, envolvendo questões de propriedade lexical e/ou de mera
ortografia, na secção 3. Além de ilustrarem as contradições e conflitos mencionados
acima, estas áreas problemáticas colocam algumas questões de carácter geral: (i) o
problema da delimitação da fronteira entre inovação linguística, integrada no sistema, e
desvio linguístico, com diferentes graus de força (cf. Peres 1996); (ii) o problema da
unicidade vs. multiplicidade da norma (isto é, da integração ou não no sistema – como
variantes livres eventualmente sujeitas a preferências estilísticas – de diferentes
estruturas em competição). Adicionalmente, as estruturas analisadas evidenciam alguma
desadequação dos instrumentos de normalização linguística, o que é especialmente
relevante, dado o impacto que esses instrumentos têm no ensino e, portanto, a sua
capacidade de influenciar um sector amplo da comunidade de suporte. Como sabemos,
alguns materiais – e.g. o Dicionário da Academia de Ciências de Lisboa ou a Gramática
de Celso Cunha e Lindley Cintra – são muitas vezes invocados como argumentos de
____________________
Actas do XX Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Lisboa, APL, 2004,
pp. 109-125
ACTAS DO XX ENCONTRO NACIONAL DA APL
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autoridade inquestionável, em casos de disputa. Ora, acontece que os textos em causa,
umas vezes, simplificam artificialmente as questões controversas, não deixando
transparecer o estatuto discutível das normas adoptadas e, outras vezes, fazem
generalizações abusivas que não resistem ao confronto com os factos linguísticos reais.
1. Flexão em número
A primeira área escolhida para ilustrar as dificuldades da fixação de uma norma –
a flexão em número – pode parecer surpreendente. Com efeito, trata-se de uma área
fortemente “normativizada”, com praticamente todas as gramáticas tradicionais a
dedicarem-lhe uma secção extensa, geralmente com regras bastante assertivas.
Adicionalmente, os dicionários de referência quase sempre incluem referência às formas
plurais nos casos mais irregulares. Ainda assim, subsistem problemas.
1.1. Plural das palavras terminadas em -x
Em primeiro lugar, destaca-se, como questão especialmente sensível, o plural das
palavras terminadas em -x. A maior parte das gramáticas limita-se a indicar, como regra
genérica, que estas palavras são invariáveis em número – cf. (1) –, embora algumas
refiram que, em certos casos, se pode, ou deve, fazer o plural em -ces – cf. (2).
(1) “Como os paroxítonos terminados em -s, os poucos substantivos terminados
em -x são invariáveis: o tórax – os tórax, o ónix – os ónix.” (Cunha e Cintra
1984: 185).
(2) “Os [nomes] terminados em -x com o valor de ce (final com que podem
também ser grafados) fazem o plural normalmente em -ces: cálix (ou cálice),
cálices; apêndix (ou apêndice), apêndices.”; “[Os nomes terminados em -x com
o valor de cs] não possuem marca de número (...). A pluralidade é marcada
pelos adjuntos (artigo, adjectivo, pronome, numeral) (...). (...): o tórax, os
tórax; o ônix, os ônix.”; “Alguns nomes com x = cs possuem a variante em ce:
índex ou índice, ápex ou ápice, códex ou códice. Seus plurais são
respectivamente índices, códices, ápices.” (Bechara 1999: 122-123)
Ora, a situação é bem mais complexa, como se torna evidente ao comparar
diferentes dicionários. Aliás, a consulta destes instrumentos de normalização é, no
mínimo, fonte de perplexidade para o falante com dúvidas, pois – literalmente – parece
não haver dois dicionários que coincidam! Esta situação é patente no quadro que se
segue, onde ocorrem cinco palavras paroxítonas e quatro oxítonas, com as indicações
dos respectivos plurais em quatro dos principais dicionários de referência do português:
ACADEMIA, PORTO EDITORA, AURÉLIO e HOUAISS (cf. referências completas no fim do
artigo). Deve notar-se que: (i) a indicação «??» significa que o plural não é indicado no
dicionário; nestes casos, a unidade lexical não recebe a etiqueta que identifica os nomes
com forma idêntica no singular e no plural (e.g. s.m.2núm, no dicionário PORTO
ALGUMAS ÁREAS PROBLEMÁTICAS PARA A NORMALIZAÇÃO LINGUÍSTICA
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EDITORA, s.m.sg. e pl., no dicionário ACADEMIA), donde se poderia deduzir que o plural
– que não é apresentado – é distinto do singular; (ii) a indicação «? ? » significa que a
unidade lexical em questão não está registada no dicionário.
SINGULAR PLURAL
ACADEMIA PORTO EDITORA AURÉLIO HOUAISS
ónix ónix ónix ónix ónix
tórax tórax tórax tórax tóraces
sílex sílex sílex sílices sílices
córtex córtex córtices córtices córtices
formas
paroxíton
as
clímax clímax ?? ?? clímaces
pirex pirex ?? ? ? pirex
telex ?? ?? ?? telex
lux lux ?? ?? lux ou luxes
formas
oxítonas
fax ?? ?? ? ? fax ou faxes
Quadro 1. Plural de palavras terminadas em -x em diferentes dicionários1
No que respeita às palavras paroxítonas, os cinco exemplos escolhidos mostram
cinco tratamentos distintos, com maior ou menor preferência pela invariabilidade (vs.
pela formação do plural com -ces). No que respeita às palavras oxítonas, que as
gramáticas não identificam como caso especial2 (veja -se por exemplo a “regra” de
Cunha e Cintra, em (1)), a situação ainda é mais complexa. O dicionário PORTO
EDITORA, por exemplo, não aplica a nenhum dos quatro nomes oxítonos do Quadro 1 a
etiqueta substantivo de dois números (s.m.2núm) com que caracteriza, por exemplo,
nomes como ónix, donde se poderá deduzir que assume que o plural não é idêntico;
todavia, nunca explicita esse plural (o mesmo acontecendo, aliás, com o paroxítono
clímax). O dicionário ACADEMIA procede de modo semelhante com fax e telex: não
coloca a etiqueta s.m.sg. e pl. e não explicita a forma plural. Já com pirex, verifica-se
uma situação curiosa, e porventura sintomática: no dicionário ACADEMIA, é-lhe
atribuída a etiqueta que indica que a forma coincide no singular e no plural, mas logo a
seguir dá-se a seguinte abonação (do lexicógrafo):
(3) Pôr os pirexes na mesa. (Dicionário ACADEMIA, p. 2867)
Além da falta de coincidência entre dicionários, são ainda de salientar os seguintes
dois factos. Em primeiro lugar, os dicionários, em especial o HOUAISS, recomendam (ou
1 Ignoro aqui a existência de variantes para as formas singulares apresentadas: (i) variante torace (sic), no
PORTO EDITORA; (ii) variante clímace, no AURÉLIO (considerada desusada) e no HOUAISS (considerada
obsoleta); (iii) variantes sílice e córtice, nos quatro dicionários (consideradas pouco usadas, no ACADEMIA);
(iv) variante paroxítona pírex nos dicionários ACADEMIA, PORTO EDITORA e HOUAISS; (v) variante
dissilábica faxe nos dicionários ACADEMIA e PORTO EDITORA (no primeiro dos quais, encabeça o verbete
principal).
2 Trata-se, geralmente, de palavras de entrada recente na língua, implicando um padrão silábico pouco
comum: fax, telex, duplex, pirex, latex, inox (ou ainda marcas como xanax, atarax, xerox, etc.).
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melhor, estipulam) formas plurais artificiais, que não encontram base de sustentação no
uso. Estão nesta situação muitas formas terminadas em -ces de frequência praticamente
nula (cf. dados do corpus CETEMPúblico) – e.g. clímaces, fénices ou látices. O seu
registo – sem qualquer menção especial – só evidencia o divórcio entre os dicionários e
o uso linguístico comum, ou seja, a desactualização destes instrumentos de
normalização.
Em segundo lugar, está tacitamente banida a estratégia de fazer o plural com
simples adição de -es: as gramáticas não referem esta possibilidade e nos dicionários os
únicos casos sancionados que encontrei foram os dos monossílabos fax e lux, para os
quais o dicionário HOUAISS admite (sem justificação ou comentário) as formas plurais
alternativas faxes e luxes. Ora, no caso das palavras oxítonas, esta parece ser a estratégia
geral usada pelos falantes (ver exe mplos em (4)) – e.g. (i) das 105 ocorrências de telex
no plural, no corpus CETEMPúblico, 93 % (98) têm a forma telexes e só 7 % (7) têm a
forma telex; (ii) há raríssimos exemplos de fax como plural, mas há 537 ocorrências de
faxes (NB: a variante gráfica singular faxe é muito rara). No caso das palavras
paroxítonas, o uso é pouco esclarecedor, já que a maior parte das palavras tem uma
frequência baixíssima de uso no plural – e.g. tórax, fénix, ónix e látex praticamente não
aparecem no plural no corpus CETEMPúblico. Nesse corpus, a única excepção é
curiosamente mu ito sintomática: clímax ocorre 29 vezes no plural, todas elas com a
forma (não reconhecida) clímaxes – cf. (5).
(4) a. “Aceitou a minha palavra, mas disse que não era preciso mandar-lhe os
telexes.” (CETEMP úblico, Ext 173597 (nd, 97b))
b. “Para pedir autorização para assistir foi necessário enviar faxes para
Londres (...).” (CETEMP úblico, Ext 2492 (clt, 97b))
c. “(...) o empreendedor (...) projectou a construção de vários imóveis para
exploração hoteleira, entre os quais surgiam unidades com 135 quartos
(...), 46 «bungalows» duplexes, salas de congressos, dois restaurantes
(...) e um estacionamento coberto para 100 viaturas.” (CETEMPúblico,
Ext 278555 (soc, 98b))
(5) “O casal que se agride ou se desencontra na procura de afectos assumese
nesta peça numa cadeias de clímaxes, num jogo de espelhos em que
as personagens se individualizam e se duplicam em avanços e recuos
(...).” (CETEMPúblico, Ext 276097 (clt, 97b))
Em suma, estamos perante uma área problemática em que os instrumentos de
referência não são esclarecedores, em que há um desencontro acentuado entre o uso e as
estipulações dos instrumentos de referência e em que subsiste um forte oscilação no
uso, parecendo verificar-se uma tendência para uma dupla norma – a “norma
consagrada”, de invariabilidade, e a “norma emergente”, de adição de –es (em especial
nas palavras oxítonas, possivelmente por analogia com os plurais das palavras
terminadas em -s).
ALGUMAS ÁREAS PROBLEMÁTICAS PARA A NORMALIZAÇÃO LINGUÍSTICA
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1.2. Plurais com deslocação do acento
Uma segunda zona problemática, dentro da flexão em número, envolve os
chamados plurais com deslocação do acento. Há três ou quatro casos mais conhecidos,
em que – a julgar pelos dados do corpus CETEMPúblico (abaixo, entre parênteses) – o
fenómeno da deslocação do acento ainda apresenta alguma vitalidade na língua, pelo
menos na língua escrita3.
(6) a. caracteres (1141) vs. carácteres (10) [0,1%]
b. juniores (2026) vs. júniores (103) [5 %] [sobresdrúxula]
c. seniores (734) vs. séniores (35) [5 %] [sobresdrúxula]
d. especímenes (5) vs. espécimenes (4) [44 %] [sobresdrúxula]
A análise destes quatro substantivos, evidencia uma competição entre a estratégia
(irregular) de deslocação de acento e a estratégia (regular) de manutenção da sílaba
tónica, característica da generalidade dos pares singular-plural em português . É de notar
que nos três últimos exemplos, a estratégia regular conduz à formação de substantivos
sobresdrúxulos – i.e. acentuados na pré-antepenúltima sílaba – que o Acordo
Ortográfico não prevê e que, tanto quanto sei, nenhum dicionário reconhece nos seus
registos.
Além destes quatro casos, há mais alguns a considerar, envolvendo plurais de
muito baixa frequência. Convém distinguir dois tipos. Num primeiro tipo, é possível
encontrar ainda textos que estipulam a deslocação de acento4, mas tal prática parece ter
caído em desuso e a generalidade dos dicionários e gramáticas de referência actuais já
não contemplam essa hipótese. Estão nesta situação os dois exemplos de (7) (que não
envolvem sobresdrúxulas). Podemos considerar que estes casos não são problemáticos e
que a norma se estabilizou na forma plural regular sem deslocação do acento.
(7) a. esfincteres vs. enfíncteres
b. sorores vs. sórores
Um segundo tipo, ilustrado em (8), é mais problemático. Trata-se de palavras
proparoxítonas terminadas em -r ou -n, em que a não deslocação do acento no plural
gera substantivos sobresdrúxulos (semelhantes a espécimenes, júniores e séniores).
(8) a. jupíteres vs. júpiteres [sobresdrúxula]
b. lucíferes vs. lúciferes [sobresdrúxula]
c. ipsílones vs. ípsilones [sobresdrúxula]
d. lexícones vs. léxicones [sobresdrúxula]
3 Penso que estes dados não legitimam qualquer inferência sobre a situação na oralidade, dado o efeito não
despiciendo dos correctores ortográficos.
4 Pires de Castro (s/d: 101) estipula a deslocação do acento no plural nos dois casos de (7); Bechara (199:
124) estipula essa deslocação para o caso (7b).
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Os dicionários e gramáticas oscilam entre simplesmente não explicitar o plural
destes substantivos (o que acontece frequentemente) e estipular as formas com
deslocação de acento. O dicionário ACADEMIA, por exemplo, aplica a estratégia da
deslocação do acento de modo sistemático, registando formas como ipsílones. lexícones
e jupíteres. Ora, o problema é que estas formas são de facto desusadas e mesmo os
falantes mais cultos não as reconhecem geralmente5.
Estas expressões colocam, adicionalmente, o problema da baixíssima frequência
de uso, que dificulta a determinação da forma mais comum entre os falantes. Em todo o
caso, algumas formas começam a difundir-se, constituindo a sua pluralização uma zona
de desvio linguístico por excelência. Por exemplo: (i) júpiter, como nome comum,
significa planeta gasoso que orbita uma qualquer estrela (numa fase em que a
astronomia está preparada para descobrir este tipo de astros; repare-se como em (9a), o
tradutor optou – contra as regras morfológicas básicas do português – pela
invariabilidade desta unidade lexical; (ii) ípsilon aparece, por vezes, como nome comum
que designa o cromossoma específico do sexo masculino; em (9b), a palavra é usada no
plural, com o seu sentido primário de letra do alfabeto, mas o jornalista usou a regra
brasileira de pluralização (que permite suprimir uma sílaba): ípsilons (cf., no português
brasileiro, dolmens, hifens, mórmons).
(9) a. “Os grandes Júpiter próximos das estrelas dão antes a impressão de se
aparentar a estrelas duplas, umas das quais não teria atingido a massa
crítica para acender o fogo nuclear.” (A Mais Bela História da Terra,
trad. do francês, Ed. Asa, Porto, 2001, p. 64)
b. “Os pontinhos em forma de seta e de ípsilons vão desaparecer todos.”
(CETEMPúblico, Ext 55088 (clt-soc, 95a))
Claramente, parece estar a afirmar-se na língua uma tendência para a pluralização
regular das palavras esdrúxulas terminadas em -n e -r – i.e., a adição de -es sem
deslocação de acento, criando substantivos sobresdrúxulos. As 152 ocorrências no
corpus CETEMPúblico dos substantivos de (6) – uma dela transcrita em (10a) – são disso
exemplo. O caso (10b) é bastante curioso: o próprio dicionário ACADEMIA – que
sistematicamente propõe a deslocação do acento e promove aportuguesamentos gráficos
que visam evitar a formação de palavras sobresdrúxulas (e.g. holígane ou gângster, com
-gs-) – apresenta numa abonação (do lexicógrafo) gânguesteres (com -gues-).
(10) a. “Entre os espécimenes biológicos que serão utilizados contam-se
bichos-de-conta, drosófilas, ovos de rã, minúsculos camarões e tecido
vivo de embriões de rato.” (CETEMP úblico, Ext 775950 (nd, 92a))
b. A vida dos gânguesteres foi amplamente retratada pelo cinema
americano. (dicionário ACADEMIA, p. 1865, verbete gângster [sic])
5 Fiz um teste a várias dezenas de alunos universitários, perguntando-lhes qual o plural da palavra ípsilon.
Nenhum deles produziu ipsílones; a generalidade das respostas foi a forma sobresdrúxula ípsilones.
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Convém salientar que a estratégia de não deslocação do acento neste tipo de
substantivos, criando formas como júniores, séniores, júpiteres, espécimenes ou
ípsilones, parece apresentar algumas vantagens, na perspectiva da normalização
linguística. Em primeiro lugar, evita a estipulação artificial de formas que os falantes
não reconhecem, impedindo o divórcio entre uso e instrumentos de normalização
linguística (cf. e.g. ipsílones); em segundo lugar, permite dar resposta a alguns desafios
que o aportuguesamento de palavras inglesas (e algumas latinas) coloca ao sistema
ortográfico do português. Se admitisse a existência de substantivos sobresdrúxulos (e os
integrasse plenamente numa próxima revisão do Acordo Ortográfico), o sistema
ortográfico português ficaria dotado de instrumentos indispensáveis para legitimar as
seguintes adaptações gráficas, de substantivos plurais – (11a) – e/ou singulares – (11bc)
6:
(11) a. húliganes (hooligans), quéniones (canyons), gânguesteres (gangsters),...
b. márquetingue (marketing), quêiteringue (catering), snórquelingue
(snorkeling), lóbiingue (lobbying),...
c. déficite (deficit), réquieme (requiem), hábitate (habitat),...
Numa palavra, o reconhecimento do padrão em causa, mesmo com um uso muito
restrito, tornaria o sistema ortográfico português mais flexível e adaptado às novas
situações emergentes. De outro modo, corre o risco de não dar conta de formas
realmente implantadas e, portanto, de se tornar obsoleto.
2. Particípios duplos
A segunda área problemática seleccionada envolve o uso das formas participiais
dos chamados verbos de particípio duplo. Como veremos, a análise dos dados
linguísticos evidencia uma acentuada desactualização dos instrumentos de normalização
nesta área.
Geralmente, as gramáticas, os prontuários ou os livros de estilo apresentam uma
regra de aplicação geral, tendo o cuidado (embora nem todos ou nem sempre) de a
apresentarem mais como uma tendência de uso que como uma norma impositiva.
Vejamos dois exe mplos (com sublinhados meus):
(12) a. “De regra, a forma regular emprega-se na constituição dos tempos
compostos da VOZ ACTIVA, isto é, acompanhada dos auxiliares ter e
haver; a irregular usa-se, de preferência, na formação dos tempos VOZ
PASSIVA, ou seja acompanhada do auxiliar ser.” (Cunha e Cintra 1984:
441).
6 Naturalmente, isto não im pede que singulares ou plurais com formas esdrúxulas, graves ou agudas sejam
posteriormente introduzidos, se a pronúncia vier a tender para estes padrões silábicos mais comuns (cf. e.g.
aportuguesamento sanduíche, a partir de sandwich, ou a oscilação entre hábitate(s) e habitá(s)).
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b. “Somente as formas irregulares se usam como adjectivos e são elas as
únicas que se combinam com os verbos estar, ficar, andar, ir e vir.”
(op. cit.: 442)
(13) “Nos casos em que se mantêm as duas formas de particípio (a regular e
a irregular), emprega-se a forma irregular nos tempos compostos com os
auxiliares ser e estar e a forma regular para a formação dos tempos
compostos com os auxiliares ter e haver.” (Estrela e Pinto-Correia
1994: 107)
O problema crucial resulta da aplicação desta regra perante as listas de verbos de
particípio duplo que ocorrem nessas mesmas gramáticas e prontuários, ou em dicionário
de verbos conjugados, por exemplo. Por norma, as listas em causa não dividem os
verbos em grupos de comportamento distinto; integram antes listas simples de verbos
que possuem as duas formas morfológicas, geralmente acompanhadas da referida regra
de aplicação geral (e uma ou duas observações sobre casos excepcionais, como o do
verbo pagar, cuja forma regular caiu praticamente em desuso). Para ilustrarmos o
desajustamento deste procedimento, consideremos alguns exemplos da lista de Cunha e
Cintra (1984: 442), apresentados logo a seguir à estipulação transcrita em (12b). Numa
mesma lista, sem qualquer observação, temos, entre outros, os cinco exemplos
seguintes:
(14) ELEGER elegido eleito
EXPRIMIR exprimido expresso
INSERIR inserido inserto
BENZER benzido bento
INCORRER incorrido incurso
Ora, como é fácil comprovar, a regra (12b) só tem alguma vitalidade (embora nem
todos os falantes a sigam) com os dois primeiros verbos (e, em registos muito
conservadores, com o terceiro). A sua aplicação cega levaria , por exemplo, ao absurdo
de considerar uma frase como (15) como natural e a correspondente com partic ípio
regular (foi benzido) como agramatical:
(15) *O novo edifício foi bento pelo padre.
Em geral, os desajustes da aplicação de regras do tipo de (12) ou (13) são tanto
mais evidentes quanto mais amplas são as listas de verbos de particípio duplo. O
Dicionário de Verbos Portugueses da Porto Editora, por exemplo, apresenta 162 verbos
– mais uma vez, uma lista única por ordem alfabética, sem qualquer menção da
existência de subgrupos de verbos com comportamentos distintos. Esta lista inclui
inúmeros particípios duplos irregulares que praticamente caíram em desuso com verbos
como estar, ficar ou afins. Eis alguns exemplos:
ALGUMAS ÁREAS PROBLEMÁTICAS PARA A NORMALIZAÇÃO LINGUÍSTICA
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(16) ABSOLVER absolvido absolto
AFEIÇOAR afeiçoado afecto
DEMITIR demitido demisso
DILUIR diluído diluto
TINGIR tingido tinto
Se aplicássemos a regra (12) ou (13), o resultado seria, uma vez mais , indesejado:
(17) a. *O reú foi absolto.
b. *As crianças ficaram afectas ao animal.
c. *O senhor está demisso!
d. *O pó já vem diluto na água.
e. *As calças foram tintas de azul.
Parece, pois, evidente que nesta área os instrumentos de normalização linguística
são ineficazes7, podendo esta situação originar problemas no ensino da língua,
especialmente a falantes não nativos.
Na realidade, o uso dos particípios (ir)regulares em português europeu padrão
actual é bastante mais complexo que o sugerido por generalizações como (12) ou (13).
Para começar, convém notar que a oscilação no uso e as dúvidas se colocam
essencialmente em dois contextos sintácticos: com ter (nos tempos compostos) e com
ser (expresso ou subentendido) nas estruturas de tipo passivo. São estes os dois casos
que realmente importa distinguir e aprofundar. Quanto aos outros, pelos menos alguns
devem ser tratados separadamente. Por exemplo, certas formas – classificadas como
particípios irregulares e apresentadas nas referidas listas de verbos de particípio duplo –,
embora estejam historicamente associadas a particípios verbais, são hoje totalmente
independentes enquanto adjectivos. A sua associação a verbos em listas do tipo que
mencionámos acima não traz grandes vantagens ao utilizador da língua com dúvidas e
pode mesmo induzir no erro de se considerar que estamos perante a mesma unidade
lexical verbal (quando, em muitos casos, a diferença semântica é já muito acentuada). É
o que acontece, por exemplo, com formas como afecto, tinto ou confuso (relativamente
aos verbos afeiçoar, tingir ou confundir, respectivamente).
Cinjamo -nos, pois, aos dois casos referidos: combinação de particípios com
ter e com ser. A questão crucial para a análise é que os verbos de particípio duplo não
se comportam todos da mesma maneira, usando o particípio regular num caso e o
particípio irregular no outro. Para cada um dos dois contextos relevantes, há uma
gradação na tendência para o uso maior ou menor de um dos particípios. E registam-se
mesmo tendências contrárias às generalizações das gramáticas: há verbos cujo particípio
7 Observe-se a seguinte “não regra” do Livro de Estilo do Público: “(...) por regra se considera que a forma
regular se utiliza com os aux iliares ter e haver e a irregular com ser e estar, bem como com ficar, andar, ir,
vir — aceitado, aceite. Nada disto, porém, será muito taxativo, porque as excepções são mais que muitas.”
(Livro de Estilo do Público, secção Verbos, http://www.publico.pt/nos/livro_estilo/18_verbos.html,
sublinhados meus).
ACTAS DO XX ENCONTRO NACIONAL DA APL
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irregular tende a impor-se em todos os contextos (mesmo com ter) e há verbos cujo
particípio regular tende a imp or-se em todos os contextos (mesmo com ser). Em suma,
as acentuadas diferenças de uso (para um mesmo contexto sintáctico) conduzem-nos
grupos de verbos verbos
ter + PPREGULAR:
n.º de ocorrências no
CETEMPúblico
ter + PPIRREGULAR: n.º
ocorrências no
CETEMPúblico
verbos cujo particípio regular não
se usa
ESCREVER
ABRIR
COBRIR
DESCOBRIR
ter escrevido: 0
ter abrido: 0
ter cobrido: 0
ter descobrido: 0
ter escrito
ter aberto
ter coberto
ter descoberto
verbos cujo particípio regular caiu
claramente em desuso
Þ sequência ter + PPREGULAR
sentida como desvio – cf. (18)
PAGAR
GASTAR
LIMPAR
GANHAR
ter pagado: 0
ter gastado: 1
ter limpado: 1
ter ganhado: 7
ter pago: 1033
ter gasto: 477
ter limpo: 24
ter ganho: 2739
ENTREGAR ter entregado:
43 (6 %)
ter entregue:
639 (94 %)
SALVAR ter salvado:
14 (8 %)
ter salvo:
158 (92 %)
MATAR ter matado:
102 (11 %)
ter morto :
819 (89 %)
ELEGER ter elegido:
30 (20 %)
ter eleito :
117 (80 %)
ACEITAR ter aceitado:
340 (25 %)
ter aceite:
1015 (75 %)
verbos cujo particípio regular
mostra indícios de cair em desuso,
mas ainda ocorre com alguma
frequência
Þ forte desafio à norma
conservadora ter +PPREGULAR
EXPULSA R ter expulsado:
23 (25 %)
ter expulso :
68 (75 %)
EXPRESSAR ter expressado:
76 (72 %)
ter expresso:
30 (28%)
EXTINGUIR ter extinguido:
29 (74 %)
ter extinto:
10 (26 %)
SUSPENDER ter suspendido:
138 (78%)
ter suspenso :
40 (22%)
PRENDER ter prendido:
60 (80 %)
ter preso :
15 (20 %)
(do tipo relevante)
DISPERSAR ter dispersado:
18 (82 %)
ter disperso:
4 (18 %)
verbos cujo particípio irregular
ocorre no contexto em causa, mas
com relativa raridade
Þ supremacia da norma
conservadora: ter + PPREGULAR
Þ sequência ter + PPIRREGULAR
tende a ser sentida como desvio –
cf. (19a-b)
SOLTAR ter soltado:
27 (90 %)
ter solto :
3 (10 %)
ENVOLVER ter envolvido: 371 ter envolto : 3
ACENDER ter acendido: 21 ter aceso: 1
(do tipo relevante)
DESPERTAR ter despertado: 174 ter desperto : 1
OCULTAR ter ocultado: 64 ter oculto : 0
verbos cujo particípio irregular
não se usa ou é bastante rara
Þ sequência ter + PPIRREGULAR
sentida como desvio – cf. (19c-d)
MANIFESTAR ter manifestado: 1547 ter manifesto : 0
(do tipo relevante)
Quadro 2. Distribuição de particípios regulares e irregulares
(de verbos de particípio duplo) no contexto ter + PP no corpus CETEMPúblico
ALGUMAS ÁREAS PROBLEMÁTICAS PARA A NORMALIZAÇÃO LINGUÍSTICA
119
necessariamente a tipologias não binárias, que os instrumentos de normalização
linguística deveriam integrar.
Exploremos apenas o caso da combinação com ter. O quadro 2, baseado nas
ocorrências de particípios regulares e irregulares de verbos de particípio duplo no
corpus CETEMPúblico, evidencia a existência de vários subgrupos de verbos8.
(18) “No fim, fica a sensação que o Governo tem gastado muito do seu
tempo a conversar (...).” (CETEMP úblico, Ext 8142 (opi, 97a))
(19) a. “Outra razão da importância de Lacan: embora o seu ensino se tenha
disperso por múltiplas escolas (...), o aspecto mais interessante é que se
verificou uma espécie de «lacanização» geral da psicanálise (...).”
(CETEMPúblico, Ext 1343625 (nd, 91b))
b. “Na noite de sexta-feira, já a LPN tinha solto na área da Ribeira de
Divor duas outras aves de rapina igualmente tratadas no Centro de
Recuperação da Ria Formosa.” (CETEMPúblico, Ext 1486694 (soc, 94a))
c. “O acompanhamento é difícil, como se alguém tivesse envolto as
colunas com um cobertor.” (CETEMP úblico, Ext 4009 (clt, 94b))
d. “Sem saberem como ou porquê, as versões que ali circulavam atribuíam
o acto à malvadez de um desconhecido que (...) tinha aceso o isqueiro e
ateado fogo às flores (...).” (CETEMP úblico, Ext 308746 (soc, 97a))
3. Trocas entre parónimos e palavras homófonas: impropriedade lexical e/ou
erros de ortografia
A terceira área problemática seleccionada envolve aspectos léxico-semânticos,
fónicos e gráficos.
Tem sido uma preocupação geral dos instrumentos de normalização linguística a
questão das trocas lexicais entre palavras de forma fónica similar (parónimas) ou
idêntica (homófonas)9, gerando impropriedades ou simples erros de ortografia (que não
são aliás detectados por correctores ortográficos simples). Vejam-se alguns exemplos,
documentados no corpus CETEMPúblico:
(20) a. “Mas os cinco países não consentiram que lhes fosse infringida uma
derrota em toda a linha.” (CETEMP úblico, Ext 518399 (soc, 92a))
8 Apenas foram pesquisadas sequências em que qualquer variante flexional do verbo ter é imediatamente
seguida da forma participial em causa (regular ou irregular). Salvo os casos em que se explicitou (no
quadro) “do tipo relevante”, não foi feita uma triagem dos contextos para excluir possíveis casos irrelevantes
(por se considerar que estes dificilmente ocorrerão ou serão em número insignificante).
9 Em certos casos, a fronteira entre homofonia e paronímia é imprecisa: certas palavras, que, num registo
pausado, podem ser diferenciadas, tendem a ser pronunciadas de igual modo em registos mais rápidos (e.g.
fluorescente / florescente, eminente / iminente).
ACTAS DO XX ENCONTRO NACIONAL DA APL
120
b. “O tráfico de drogas duras é o mais fluorescente dos negócios do bairro
e, por isso, não é de estranhar que vendedores e consumidores de
narcóticos se espalhem pelas ruas.” (CETEMPúblico, Ext 78275 (soc,
97b))
c. “Enumera os pratos da terra, (...) como (...) os brilhões (buxo de cabra
recheado de carne, chouriço, arroz e hortelã), os bolos de leite e as
filhozes.” (CETEMP úblico, Ext 614494 (soc, 96b))
Muitos prontuários incluem listas destes parónimos e/ou palavras homófonas e os
próprios dicionários chamam muitas vezes a atenção para este tipo de relações entre
palavras. Ainda assim, os desvios nesta área são persis tentes, como se pode comprovar
através de corpora de uso real da língua, como o CETEMPúblico. Importa acentuar que,
os desvios não têm todos os mesmo impacto na comunicação: alguns são relativamente
inconsequentes (como acontece nos três exemplos acima), mas muitos outros podem
afectar significativamente a passagem de informação. É o que acontece, ou pode
acontecer, se forem trocadas expressões como as de (21), como acontece com alguma
frequência na imprensa, causando ruído na comunicação:
(21) a. rectificar C ratificar um tratado
b. escritor muito prolixo C prolífico
c. intervenção intempestiva C tempestuosa (ou brusca, ou impetuosa,...)
d. ir de encontro a C ao encontro de os desejos de alguém
e. tráfico C tráfego de bicicletas
No que respeita a exemplos deste tipo, parece haver algum consenso quanto à
utilidade de uma norma conservadora, na medida em que esta permite preservar
distinções de significado que de outro modo estariam comprometidas.
Um dos aspectos que aqui me interessa salientar é que os instrumentos de
normalização linguística disponíveis (prontuários, guias, etc.) – pelo menos os que eu
conheço – estão algo desactualizados, relativamente às questões de facto colocam
problemas aos falantes. As listas são por vezes extensas, mas muito incompletas. Por
um lado, há mu itos casos que suscitam confusões frequentes e são ignorados nessas
listas e, por outro lado, misturam-se frequentemente pares de expressões realmente
problemáticas com outros que são desconhecidas da maioria dos falantes. Por exemplo,
numa edição de 1992 (a 23ª) do conhecido Prontuário Ortográfico e Guia da Língua
Portuguesa de Bergström e Reis, a questão da paronímia e homofonia é ilustrada com
pares de palavras de uso reduzidíssimo, como estipulado vs. extipulado e assenso vs.
acenso; o guia recém-publicado Estrela et al. (2003), anunciado como “guia completo
para usar correctamente a língua portuguesa”, apresenta também listas muito
incompletas, a par de exemplos de limitada utilidade, como paceiro vs. passeiro.
Acresce que as listas geralmente apresentadas não têm exemplos contextualizados, nem
informações sobre o uso que permitam captar o seu verdadeiro significado e/ou as
possíveis implicações comunicacionais de um uso impróprio.
ALGUMAS ÁREAS PROBLEMÁTICAS PARA A NORMALIZAÇÃO LINGUÍSTICA
121
Analisando corpora do português contemporâneo, verifica-se rapidamente que há
pares de palavras cuja troca é uma fonte constante de desvio. Parece claro que é sobre
estas formas, de uso “impróprio” por vezes bastante difundido, que deveria incidir o
trabalho didáctico / pedagógico (que é, assumidamente, objectivo das gramáticas
tradicionais e dos guias da língua). Mais úteis que as listas genéricas dos prontuários,
seriam, por exemplo, listas de pares especialmente problemáticos, com informação
lexical sobre os vocábulos relevantes e ilustração de desvios. Seguem-se alguns
exemplos ilustrativos de pares desse tipo, com trocas registados em textos de imprensa
(exemplos do corpus CETEMPúblico):
(22) a. [INVOCAR C EVOCAR] “Num telefonema anónimo (...), um indivíduo
comunicou a existência de uma bomba na linha sem, contudo, ter evocado
qualquer razão para o facto (...).” (NP, par 1719)
b. [EVOCAR C INVOCAR] “as baladas [são agora] mais comprometidas e
inspiradas, chegando mesmo a invocar aqui ou ali a secura do piano e da voz
de John Cale (...).” (NP; par 50149)
c. [INFLIGIR C INFRINGIR] “Ivete Margarida morreu em casa da sua ama, uma
mulher identificada pelo nome Ana Maria e que, de acordo com alguns
vizinhos, teria por hábito infringir castigos físicos à criança.” (CETEMPúblico,
Ext 248478 (eco, 92b))
d. [TRÁFEGO C TRÁFICO] “«Parecia que tinha voltado à tropa», dizia há dias
um taxista, a guinar pelo tráfico lisboeta.” (NP, par 36561)
e. [TRÁFICO C TRÁFEGO] “Como corolário deste hipotético aumento, viria
fatalmente o aumento de todos os males actualmente relacionados com o
consumo e tráfego da droga.” (CETEMP úblico, Ext 341266 (soc, 93a))
f. [ENCANDEAR C ENCADEAR] “A vítima foi Albertino Rodrigues Nunes (...),
baleado (...) por um homem de 29 anos (...) que afirmou que (...) a vítima o
terá encadeado quando ligou os máximos do veículo em que seguia.”
(CETEMPúblico, Ext 823459 (soc, 92a))
g. [RATIFICAR C RECTIFICAR] “Na medida em que (...) os portugueses não
tiveram ensejo, depois de um exame sério, de rectificar em acto solene o
Tratado de Maastricht, assumindo, por assim dizer, «pessoalmente», como
outros europeus as consequências, positivas ou negativas da sua escolha
(...).” (CETEMPúblico, Ext 384163 (soc, 92b))
h. [PERFILAR C PERFILHAR] “Como adversário mais directo de Ieltsin, começa
a perfilhar-se a figura do ex-primeiro-ministro soviético Nikolai Rijkov, que
será provavelmente apoiado pelo Partido Comunista.” (CETEMPúblico, Ext
748894 (pol, 91a))
i. [MUNGIR C MUGIR] “As crianças conhecem a vida no campo, familiarizamse
com os animais, habituam-se a sentir os cheiros do feno cortado e seco, a
saborear o leite acabado de mugir e os frutos colhidos directamente das
árvores.” (CETEMPúblico, Ext 540170 (soc, 94a))
ACTAS DO XX ENCONTRO NACIONAL DA APL
122
j. [PROLÍFICO C PROLIXO] “Aquele que pode considerar-se um dos
compositores mais prolixos deste século e, sem sombra de dúvida, um dos
mais orig inais, está de novo entre nós (...).” (NP, par 63175)
l. [IMINENTE C EMINENTE] “O Regimento Sapadores de Bombeiros entende
que não existe perigo eminente de desabamento das instalações do Ateneu
Comercial de Lisboa.” (NP, par 65404)
m. [EMINENTE C IMINENTE] “A reforma educativa (...) não passou, no primeiro
momento, de um cliché político longínquo da realidade escolar sobre o qual
se debruçavam as cabeças de algumas personalidades iminentes do universo
académico.”
n. [CANDENTE C CADENTE] “Quanto ao afeitado, questão cadente, foi por todos
reconhecido que é fraude que não aproveita, visto aviltar o toiro (...).”
(CETEMPúblico, Ext 1481755 (soc, 95a))
o. [AURA C ÁUREA] “E Gusseinov, um milionário de 35 anos conhecido pelo
cuidado que põe na sua aparência, viu nascer à sua volta uma áurea de
salvador.” (CETEMPúblico, Ext 661187 (pol, 93b))
p. [EFLUENTE C AFLUENTE] “(...) a empresa Crizaves construiu no local de
despejo dos afluentes industriais uma pequena represa que capta água para o
funcionamento da linha de abate de frangos (...).” (CETEMPúblico, Ext 1362
(soc, 97b))
q. [CORRETOR C CORRECTOR] ”Que o digam os correctores da Bolsa de
Istambul que mesmo assim até que têm uma vida muito mais saltitante do
que colegas de outras partes.” (CETEMPúblico, Ext 931320 (soc, 92b))
r. [CAPTAR C CAPTURAR] (cf. influência do inglês capture) “Depois de mais de
trinta anos de cimeiras bilaterais que capturaram as atenções do mundo,
Washington e Moscovo decidiram (...) mudar de tema.” (CETEMP úblico, Ext
27382 (pol, 93a))
s. [AO ENCONTRO DE C DE ENCONTRO A] “Arlindo Cunha passou pelo meio,
dispôs-se depois a ouvir as queixas de um representante de uma empresa
têxtil em crise e foi depois de encontro a mais de um milhar de agricultores
que no interior do recinto discutiam a agricultura portuguesa.” (NP, par
54783)
t. [CONTENTOR C CONTENDOR] “(...) entre excepcionais medidas de segurança
começaram a ser desembarcados enormes contendores, pesando 90 toneladas
(...).” (NP, par 14039)
u. [VENTRÍCULO C VENTRÍLOQUO] “Seguirá até às aurículas e ventríloquos.”
(CETEMPúblico, Ext 1189320 (soc, 93a))
v. [CÍRCULO VICIOSO C CICLO VICIOSO] “Ou seja, vendia títulos que não tinha,
recebia o dinheiro e comprava depois os títulos em dívida, entrando num
ciclo vicioso.” (CETEMP úblico, Ext 40041 (eco, 92a))
ALGUMAS ÁREAS PROBLEMÁTICAS PARA A NORMALIZAÇÃO LINGUÍSTICA
123
Convém notar que nesta área, o dinamismo da língua – que transforma
inexoravelmente o des vio de ontem na norma de amanhã – se sente com especial força.
A falta de uma acção efectiva dos instrumentos de normalização linguística permite uma
consagração relativamente rápida dos “desvios” (alguns dos quais, como vimos, são
perturbadores do sistema por envolverem diferenças relevantes de significado). A este
propósito, é curioso comparar, por exe mplo, a atitude de vários dicionários recentes
perante expressões que no passado foram consideradas desvios. Os casos que se seguem
ilustra m três situações distintas:
(23) avir-se C haver-se
(24) a. mungir C mugir
b. quando muito C quanto muito
(25) círculo vicioso C ciclo vicioso
O caso (23) ilustra uma troca lexical já não sentida como desvio, mas antes
plenamente integrada no sistema. O reconhecimento de haver-se como sinónimo de
avir-se nos quatro dicionários ACADEMIA, PORTO EDITORA, HOUAISS e AURÉLIO
evidencia a evolução registada face a opiniões hiper-conservadoras como as de Mendes
de Almeida no seguinte excerto: «Estes dois verbos pronominais [avir-se, haver-se], de
largo uso, não podem (...) ser empregados indiferentemente como sinônimos; Haver-se
significa portar-se, proceder, comportar-se (“Houve-se muito bem no exerc ício do seu
cargo” (...)), ao passo que avir-se quer dizer arranjar-se, entender-se, acomodar-se (...).
(...) “Aquele que sobre ti lançar vistas de amor ou de cobiça, comigo se avirá” (...).»
(Mendes de Almeida 1998: 61). Os corpora são também esclarecedores quanto ao uso
actual: no CETEMPúblico encontramos 19 formas infinitivas haver-se, com o sentido
relevante, contra zero ocorrências do infinitivo avir-se.
Os exemplos de (24) integram – à direita das setas – formas condenadas na
generalidade dos guias da língua, prontuários e afins e não dicionarizadas
tradicionalmente, mas que alguns dicionários consagram – nomeadamente, o dicionário
ACADEMIA, numa atitude inovadora e porventura polémica (que, aliás, estende a muitas
outras expressões). Trata-se de mugir como sinónimo de mungir (= ordenhar) e da
locução quanto muito como sinónima de quando muito. Os dados do corpus
CETEMPúblico apontam para uma ocorrência destes “desvios” de cerca de 20 %: 11
mungir vs. 3 mugir (= ordenhar) [21 %]; 738 quando muito vs. 184 quanto muito [20
%].
Por fim, (25) ilustra uma situação semelhante a (24), quer do ponto de vista do uso
quer do ponto de vista do não reconhecimento geral em dicionários e prontuários. A
diferença é que a forma ciclo vicioso – apesar de ter uma taxa de ocorrência próxima
dos 30 % – não é registada no dicionário ACADEMIA (ao contrário do que este
dicionários faz noutros casos comparáveis). Os dados do CETEMPúblico são: 280 círculo
vicioso vs. 114 ciclo vicioso [29 %]. Obviamente, estas discrepâncias de tratamento
ACTAS DO XX ENCONTRO NACIONAL DA APL
124
colocam mais uma vez a questão do carácter discutível da norma e da fiabilidade dos
instrumentos de normalização disponíveis para o português.
4. Breve conclusão
Os dados linguísticos discutidos nesta apresentação permitem-nos tirar duas breves
conclusões. Em primeiro lugar, impõe-se uma visão não maniqueísta da norma
(relativamente às formas e estruturas em competição), com o reconhecimento de zonas
de variação livre ou estilística nos casos em que o uso generalizado pela comunidade de
suporte assim o determine. Esta visão é compatível com uma possível hierarquização de
preferências, a integrar nos dicionários (cf. uso da etiqueta forma não preferencial em
HOUAISS) e gramáticas – e.g. “forma que tende a desaparecer”, “forma nova cujo uso já
se difundiu, ou evidencia forte tendência para se impor”, “forma de uso pouco frequente
e difícil normalização”. Todos os aspectos devem ser equacionados, em prol de uma
escolha informada do falante, nos casos de dúvida.
Em segundo lugar, verifica-se uma necessidade urgente de revisão dos
instrumentos de normalização linguística (incluindo, com especial destaque, pela sua
ampla difusão, as gramáticas escolares e os prontuários de grande divulgação). A
revisão em causa deve ter em conta o uso a actual da língua pela comunidade de suporte
(idealmente com o apoio de corpora ) e não uma visão idealizada da língua, por vezes
distante da realidade. Em alguns casos, haverá necessidade de romper com um certo
conservadorismo , injustificado, dos instrumentos em causa.
Referências bibliográficas
I. Dicionários
[ACADEMIA] Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das
Ciências de Lisboa, Editorial Verbo, Lisboa, 2001.
[AURÉLIO] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda: 1975, Novo Dicionário da Língua
Portuguesa, 2ª ed. rev. e aum., Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1986.
[HOUAISS] Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Editora Objetiva, Rio de Janeiro,
2001.
[PORTO EDITORA] Dicionário da Língua Portuguesa 2004, Dicionários Editora, Porto
Editora, Porto, 2003.
Dicionário de Verbos Portugueses, Dicionários Editora, Porto Editora, Porto, 1999.
II. Corpora
[CETEMPúblico] Corpus CETEMPúblico 1.7 anotado 2.0, disponível em
http://www.linguateca.pt/cetempublico/acesso_CP_anotado.html
ALGUMAS ÁREAS PROBLEMÁTICAS PARA A NORMALIZAÇÃO LINGUÍSTICA
125
[NP] Corpus Natura-Público anotado v. 3.3, disponível em http://acdc.linguateca.
pt/acesso/
III. Outras obras
ALMEIDA, Napoleão Mendes de: 1998, Dicionário de Questões Vernáculas, Editora
Ática, São Paulo, 4.ª ed., 2.ª reimp., 2001.
BECHARA, Evanildo: 1999, Moderna Gramática Portuguesa, Editora Lucerna, Rio de
Janeiro, 37ª ed. revista e ampliada (12.ª reimp., 2002).
BERGSTRÖM, Magnus e Neves Reis: 1992, Prontuário Ortográfico e Guia da Língua
Portuguesa, Editorial Notícias, Lisboa, 23.ª ed.
PIRES de Castro, José Joaquim: s/d, Lições Práticas de Português. Curso Completo da
Língua Pátria [Edição Especial Patrocinada pela Direcção Geral da Educação
Permanente], 12.ª edição, Empresa Nacional de Publicidade.
CUNHA, Celso e Luís F. Lindley Cintra: 1984, Nova Gramática do Português
Contemporâneo, Edições João Sá da Costa, Lisboa.
ESTRELA, Edite e J. David Pinto-Correia: 1994, Guia Essencial da Língua Portuguesa
para a Comunicação Social, Editorial Notícias, Lisboa, 5.ª ed., 2001.
ESTRELA, Edite, Maria Almira Soares e Maria José Leitão: 2003, Saber Escrever.
Saber Falar. Um Guia Completo para Usar Correctamente a Língua Portuguesa,
Publicações Dom Quixote, Lisboa.
Livro de Estilo do Público, edição de Fevereiro de 1998, disponível em
http://www.publico.pt/nos/livro_estilo/index.html
PERES, João Andrade: 1996, “Convenções e Desvios na Língua Portuguesa”, in
Revista Internacional de Língua Portuguesa, 16, pp. 9-16.

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